Pretérito Imperfeito - Gustavo Araujo

11:00

"[...] inveja-se o pássaro que com um rufar de asas migra para longe de todos os problemas 'terrenos' da mesma forma que se inveja a trama de ficção, em tudo mais emocionante e organizável do que o tédio caótico da realidade." (Trecho retirado do prefácio).

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Em tempos de best-sellers, livros autobiografias de youtubers, nos quais o ego sobrepõe a poesia da vida, em tempos de trilogias, sagas e livros "feitos para vender", tempos de livros com enredos previsíveis, clichês já tão batidos e que em nada acrescentam aos leitores, se deparar com uma estória como Pretérito imperfeito é o mesmo que encontrar agulha no palheiro. Uma pérola no oceano do mercado editorial atual.

Quando o Gustavo, criador desse universo tão lindo, entrou em contato comigo para que eu lesse e resenhasse seu livro, eu não imaginava que estaria a ponto de conhecer uma narrativa tão bonita e triste, ao mesmo tempo, personagens tão reais e uma das estórias mais sublimes que já li. Não é exagero dizer que Pretérito imperfeito é um livro completo, bem escrito, bem ambientado, bem narrado (ah... a narrativa!) e tão bem construído ao longo de suas 286 páginas. Logo, preciso, primeiramente, agradecer ao escritor pela oportunidade dada a mim e aos meus leitores de conhecer essa obra.

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Acompanhamos Toninho, um menino de treze anos que perdeu a mãe e mora com o pai, Pedro Vieira, um homem aparentemente rude, que não tem jeito com o filho e com as palavras. Após a morte de Catarina, pai e filho se veem sozinhos no mundo, já que ela era o elo que os unia. Contudo, eles só precisam de coragem para se aproximar um do outro, sentimento que nem um, nem outro, possuem. Vemos, então, uma relação complicada entre ambos, já que o pai, Pedro, já vinha de uma criação sem carinho e, consequentemente, trata o filho do mesmo modo que foi tratado. O menino, por sua vez, obedece ao pai sem questionar numa espécie de temor ao autoritarismo do pai.

A escola também não é um lugar agradável para Toninho. As aulas de Língua Portuguesa e Literatura, em particular, são um martírio para ele. A dificuldade na leitura e os frequentes gaguejamentos o torna motivo de gozação por parte dos outros colegas, e a professora, Leila, é incapaz de poupar o menino de tamanha humilhação.

Toninho encontra refúgio em um bosque, onde ele pode observar os pássaros, sua grande paixão. E é lá que, certo dia, ele encontra Cecília, uma menina também de treze anos que acaba se tornando sua amiga e confidente. A amizade dos dois é algo tão bonito, pois não há interesses, não há julgamentos. O leitor sabe, de antemão, que Toninho é um menino pobre e um tanto complexado, e Cecília, uma menina rica e que tem oportunidades, porém, quando se encontram no bosque nada disso é falado, são só dois jovens que encontram alento um no outro.

"Aquele era o seu lugar secreto, o pedaço de mundo onde era rei e ninguém o perturbava [...] Não havia problemas com seu pai ou qualquer frustração. Ali no bosque tudo desaparecia. Eram apenas ele e a natureza, o som dos pássaros e o cheiro do mato. Só a saudade da mãe ficava. Disso não tinha como se livrar."

Concomitantemente, o leitor acompanha as cartas que Cecília escreve, para uma amiga - ou para ela mesma, não se sabe - nas quais ela relata tudo que acontece em sua casa e também nas tardes que passa no bosque com Toninho. O pai de Cecília está sendo investigado pela polícia por supostamente apoiar movimentos comunistas e foge, prometendo buscar a filha e a mulher mais tarde. Isso faz com que a menina anseie o resgate do pai, ao mesmo tempo que lamenta ter que, possivelmente, abandonar o amigo.

"Às vezes me sinto como se tivesse noventa anos. Com uma saudade imensa do que já passou. E isso me deixa triste, porque eu sei que nada do que foi bom vai acontecer de novo." (Cecília)

A narrativa também intercala, além do ponto de vista de Toninho e das cartas de Cecília, entre o passado do pai de Toninho, Pedro, quando ele era Sargento Vieira. E nesses momentos podemos entender a personalidade e o comportamento dele, desde a infância na roça, a vontade de estudar não apoiada pelo pai, a entrada na polícia e a vida solitária.

A partir dessas três perspectivas, a narrativa simples se mostra grandiosa, ao passo que a vida desses três personagens se interliga de uma maneira que o leitor possa perceber a trama riquíssima construída pelo escritor e se encerra num final incrível. Foi impossível não levantar os olhos da leitura depois de ler o último parágrafo e perceber como não poderia haver um final mais lindo - e triste - para a estória. Fiquei pensando no que uma amiga, a Paula do Caçando Ouriços, escreveu sobre o drama, e que vem de encontro com o que sempre discutimos sobre a necessidade de finais felizes, que é uma discussão que Toninho e Cecília também tem durante a estória: "Por que evitar temas fortes? Por que evitar o drama?". As pessoas geralmente buscam na ficção consolo para seus problemas, e buscam nos finais felizes dos personagens que acompanham o final feliz que a vida delas provavelmente não terá. Desse modo, nos tornamos frágeis diante dos "dramas" e, consequentemente, despreparados para aceitar as mazelas e infortúnios da vida. Pode parecer um tanto quanto autoajuda o que acabo de escrever, mas é a reflexão - uma das - que essa leitura me proporcionou.

Além disso, não posso negar que o relacionamento de Toninho e o pai me fez lembrar muito do relacionamento que tive com meu pai, no qual a falta de coragem e de tato com as palavras me fez perder muito tempo de uma relação que, hoje em dia, eu vejo que é uma das coisas mais preciosas que tenho na vida. Olha a vida imitando a arte (ou seria o contrário?). E olha eu me abrindo aqui, o que um bom livro não faz com a nossa vida e visão de mundo, não é?

Pretérito Imperfeito é um livro simples, sim. Não é daqueles carregados de aforismos ou personagens estereotipados, longe disso. Foi uma das leituras mais diferentes e prazerosas que fiz nos últimos tempos, talvez por ter me deixado levar pela mão e lido com calma, apreciado cada momento, cada carta, cada flashback. Confesso que foi difícil organizar meu pensamento para escrever essa resenha e tentar mostrar o quão lindo esse livro é, e talvez você, leitor, tenha chegado até aqui e não tenha percebido o que eu tenho tentado dizer. A verdade é que essa é uma leitura para quem sabe apreciar uma estória que cativa não pela sua "comercialidade", se é que você me entende, mas pelo seu conteúdo altamente reflexivo e poético. Recomendo a leitura para quem gosta de bons livros, com temas como política, família, infância e, principalmente, estórias singelas e tocantes.

"Pensando agora, percebo a obviedade dessa receita. O que faz da leitura algo tão prazeroso é justamente imaginar a cena, as pessoas, as vontades, enfim, enxergar a si mesmo, identificar-se com as situações descritas. Claro, só funciona se o livro for bom [...]"

Beijinhos, Hel.

ARAUJO, Gustavo. Pretérito imperfeito. 1ª ed. Campo Grande, MS: Caligo, 2015. 286 p.

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10 comentários

  1. Olá! =)
    Primeiramente, devo dizer inicialmente fiquei me lembrando do livro "Pai, Patrão", não que haja muitas semelhanças (até porque não me lembro muito bem do livro, pois o li no Fundamental), mas porque conta dessa relação de pai e filho. Até por ser uma fonte de dramas, eu diria.
    Além disso, achei sua fala sobre drama incrível! Pois, de fato, se a leitura é um ponto de fuga, em que se espera os finais felizes que não se tem na realidade, logo a realidade estará cada vez pior para a pessoa, que não saberá lidar com a própria vida. É o drama e essas situações complicadas, o sofrimento alheio que nos permite pensar em nós mesmos e no mundo, vivenciar e aprender.
    Isso me lembra de uma frase do Rildo Cosson: “A literatura nos diz o que somos e nos incentiva a desejar e a expressar o mundo por nós mesmos.”. Isso, claro, juntando com parte da última citação que colocasse, "só funciona se o livro for bom".
    Então, né, drama~ <3
    Procurarei ler este livro, que parece uma ótima leitura. =)
    Até porque encontrar um livro nacional cuja leitura vale a pena é um tanto difícil.
    Enfim, adorei a resenha! ^^

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    1. Olá, Paula.
      Esse relacionamento difícil de pai e filho é muito bem explorado nessa estória, não sei se é porque passei por situação semelhante, mas senti muita verdade nas palavras e consegui sentir todo o drama. Muito emocionante. Já que, realmente, é o sofrimento alheio que nos permite pensar no nosso e em nós, como você bem colocou em seu comentário.

      I ❤ DRAMA

      Leia sim, é um livro excelente!
      Muito obrigada!

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  2. Oi Hel!
    Preciso dizer que adoro suas resenhas, mas essa em especial tocou lá no fundo!
    Adorei a premissa do livro e tudo o que você disse sobre ele me fez querer lê-lo, pois deve ser uma obra muito linda!
    E por ser nacional, já vale ainda mais a pena!
    Beijos
    www.blogleituravirtual.com

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    1. Oi, Marina!
      Que bom ler isso, muitíssimo obrigada!
      Exatamente por ser uma obra nacional e tão linda é que devemos valorizá-la.

      Beijos

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  3. Olá Hel,
    A leitura parece ser bem diferente do que estamos acostumados mesmo e isso é legal. Achei a premissa da leitura bem bonita e fiquei muito curiosa para fazer a leitura, acho bom fugirmos das histórias estereotipadas que temos atualmente.
    Dica anotada, com toda a certeza.
    Beijos,
    Um Oceano de Histórias

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    1. Olá, Bru!
      É sim uma leitura muito bonita e que foge do tipo de publicações que temos visto por aí. É um livro bem escrito, simples, com personagens bem construídos. É bom mesmo sairmos um pouco da zona de conforto e lermos coisas diferentes.

      Bjs

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  4. Oi Hel,
    Que resenha linda!!! <3
    Eu adorei a premissa desta história. Ela parece ser incrível! Confesso que fiquei até balançado enquanto lia sua opinião sobre este livro. Vou anotar essa dica para futuras aquisições. Parabéns pela resenha, ela ficou incrível!
    Beijos
    Leonardo - Brainstorm

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    1. Olá, Leonardo!
      Muito obrigada, juro que tentei mostrar, por meio da resenha, o quão linda e emocionante essa estória é! Que bom que você conseguiu ser tocado pela premissa do livro!

      Beijos!

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  5. Nossa! Esse livro parece maravilhoso!
    Eu gosto de muito de escritores brasileiros, e tento sempre descobrir coisas novas. Recentemente, apostei em uma moça que me fez um pedido de resenha, e adorei o livro dela!
    Sua resenha está maravilhosa, com ela eu consegui imaginar os aspectos do livro, e tenho certeza que eu gostaria de ler!

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    1. Olá, Lethycia! O livro é demais mesmo, também tento sempre valorizar o que é nosso, e essa leitura me deixou extremamente satisfeita!

      Muito obrigada, beijos!

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