Orlando - Virginia Woolf

11:19

"O homem tem a mão livre para pegar a espada, a mulher deve usar a sua para evitar que os cetins lhe escorreguem dos ombros. O homem encara o mundo de frente, como se tivesse sido feito para seu uso e de acordo com o seu gosto. A mulher lança-lhe um olhar de esguelha, cheio de sutilezas e até de desconfiança. Se usassem as mesmas roupas, é possível que sua maneira de olhar viesse a ser a mesma." (Woolf, 1994, p. 138-139)

Foto: arquivo pessoal

A história de Orlando é no mínimo curiosa quando vista pela primeira vez: Orlando é homem até os trinta anos e, certo dia, acorda como mulher! Como se não bastasse, Orlando vive mais de quatro séculos. Confuso? Pois eu digo que esse livro é um dos mais lindos e profundos que já li!

A história começa quando o protagonista é um belo e jovem rapaz que vive na Inglaterra do século XVI no seio de uma família abastada. Quando a rainha Elizabeth visita a sua família, ela se encanta com o rapaz e ele passa a ser seu protegido. A partir daí passamos a acompanhar vários momentos da vida de Orlando, esparsos, mas em ordem cronológica. A primeira grande aventura dele se dá quando ele conhece uma princesa russa; eles se amam ardentemente e planejam fugir, contudo, na data e hora do ato ela não aparece e Orlando, a partir daí, se decepciona tão profundamente que entra em um estado de depressão e melancolia. Ele, então, se enclausura em sua casa e fica obcecado pelos livros e pelos autores que o escrevem, vivendo por muito tempo assim. Mas tudo muda quando ele dorme um sono profundo de sete dias e acorda:

"- e com isso Orlando despertou.
Espreguiçou-se. Levantou-se. Ficou de pé completamente despido diante de nós, e enquanto as trombetas soavam Verdade! Verdade! Verdade! não temos escolha senão confessar - ele era uma mulher." (Woolf, 1994, p. 103 )

Após esse evento, e para a surpresa do leitor, o pronome muda e ele agora é ela! Contudo, o fluxo da narrativa segue naturalmente, embora em Orlando tenha se operado uma mudança das mais singulares. Com a mudança, o protagonista, então, começa a refletir sobre as vantagens e desvantagens de já ter sido homem e, agora, ser mulher:

"Lembrava agora como, quando rapaz, insistira em que as mulheres deviam ser obedientes, castas, perfumadas e caprichosamente enfeitadas. "Agora tenho que pagar pessoalmente por esses desejos" , refletiu; "pois as mulheres não são (julgando pela minha própria curta experiência do sexo) obedientes, castas, perfumadas e caprichosamente enfeitadas por natureza." (Woolf, 1994, p. 117)

"Qual é o maior êxtase? O do homem ou o da mulher? E não serão talvez idênticos?" (Woolf, 1994, p. 116)

Orlando percebe, contudo, que, com a mudança do sexo, as cobranças da sociedade para com a sua conduta mudam totalmente. Antes ele podia ser arrojado, agora precisa ser recatada. 
A protagonista, a partir desse acontecimento, vive até a época presente (época presente do livro, anos 20).

***

É difícil descrever a experiência da leitura dessa obra. Se eu tivesse que escolher uma palavra para definir Orlando seria "singular". A escrita de Virginia Woolf é magnífica, pois, em um único livro, ela consegue abordar temáticas como a homossexualidade, a sexualidade, androginia e o feminismo. As críticas são quase explícitas e o modo como ela viabiliza tocar nesses assuntos, tão polêmicos na época, dela é genial, pois a mudança de sexo de Orlando não só dá ao leitor a perspectiva da condição de ambos os sexos, como também mostra a visão da sociedade em relação ao sexo feminino. A transfiguração do sexo masculino para o sexo feminino dá ao leitor um panorama das duas situações: ser homem e ser mulher, mesmo que no mesmo corpo; quando homem, Orlando é tratado de uma forma, quando mulher, de outra.
A leitura, em alguns momentos, foi difícil sim, não vou negar. Assim como Clarice Lispector, Virginia também divaga durante a narrativa e estabelece uma conversa com o leitor, o que me passou a mesma sensação intimista das obras da Lispector. Mas eu vejo isso de uma forma positiva e que dá à narrativa um tom quase poético, embora seja em prosa.
Um dos aspectos que achei muito marcante no enredo foi a marcação de tempo. A duração de uma vida é colocada em cheque pela autora, que demonstra que uma pessoa pode viver quatro séculos dentro de um corpo de trinta e seis anos, enquanto alguns já estão mortos e nem sabem disso. Ela enfatiza que a experiência de vida e o modo como a levamos não condiz com o tempo do relógio. Talvez soe um pouco confuso, é difícil para mim expressar da mesma maneira que Virginia expressou por motivos óbvios, mas o que quero que entendam é que a mim esse livro causou reflexões muito pertinentes e valiosas. 

Foto: arquivo pessoal
Acho que vou parar por aqui, já me prolonguei demais, mas, antes, quero pedir: leiam Orlando!
Apesar de ser uma leitura densa, é uma experiência das mais gratificantes.

PS.: a quem possa interessar ou ainda não saiba, o livro Orlando, em algumas edições, leva o subtítulo "uma biografia" devido ao fato de Virginia ter dedicado a obra à Vita Sackville West, que era muito sua amiga e com a qual Virginia teve um caso amoroso. Orlando, logo, é na verdade a própria Vita.

WOOLF, Virginia. Orlando. Rio de Janeiro: Ediouro, 1994. 238 p. Tradução: Laura Alves

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22 comentários

  1. Apenas por sua resenha percebemos a profundidade do livro. Parece ser uma crítica sobre a separação entre os sexos, a subjugação da mulher, tantas coisas ao mesmo tempo, em plena década de 1920. Existem alguns autores que estão mesmo à frente de seu tempo. Abraço!

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    1. Oi, Maria.
      Também pensava isso enquanto lia "Orlando"; que Virginia Woolf foi uma mulher a frente de seu tempo.

      Abraço!

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  2. Oi! Ainda não comecei a ler, de fato, o livro, mas pelo que diz a obra deve ser incrível. =)
    Só pela história já dá para ver que há muito o que se pensar sobre a sociedade e tudo o mais. Tentarei ler antes das aulas começarem para o clube do livro~ x)

    Gostei da resenha! ^^

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    1. Oi, Paula. Eu tenho certeza que você vai gostar, talvez você estranhe um pouco os devaneios da Virginia, ^^

      Obrigada :)

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  3. Olá, Hel. Que interessante este livro parece ser!
    Admito que suas resenhas sempre me despertam certo interesse por livros que normalmente eu passaria reto na livraria.
    Este parece ser um livro muito profundo que nos faz refletir bastante sobre vários assuntos...

    Parabéns pela resenha!
    Beijo
    http://www.blogleituravirtual.com/

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    1. Olá, Marina :)
      É realmente um livro interessante, e fico feliz em saber que tenho despertado o seu interesse pelos livros que eu indico aqui no blog ^^

      Muito obrigada, beijão!

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  4. Oi, Hel!
    Primeiro, devo dizer que amei o relógio *-*
    Confesso que não sabia nada de nenhuma obra da Virginia Woolf e só conhecia de nome. Porém, depois da sua resenha, fiquei bastante intrigada em ler essa obra. Podemos trazer alguns temas que você citou, como homossexualidade e feminismo, para atualidade, onde são temas corriqueiros do dia-a-dia.
    Beijos
    Balaio de Babados | Participe do sorteio do livro Marianas

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    1. Oi, Luiza ^^
      Lindo esse relógio, né!? Bem vintage, haha
      Eu também só conhecia a autora de nome, até ano passado quando vi um projeto de leitura que se chamava #lendoOrlando, a partir daí encasquetei que leria esse livro e aqui estou, apaixonada!
      Os temas são muito atuais, deve ser por isso que a obra se conserva atemporal.

      Beijos!

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  5. Oi Helena,

    Eu não conhecia a obra, mas ela acabou de ir para minha lista de leitura. Pelas ideias abordadas no livro (algo tão atual) deve ser uma leitura para pensar e refletir. A ideia é interessante e eu gostei de sua definição: "singular", não sei explicar, mas sua resenha pareceu espelhar bem a ideia do livro, a suavidade, os questionamentos. Como mencionou Clarice Lispector, acho que eu preciso estar no clima para ler a escrita da Virginia Woolf, mas esse tornou-se agora uma leitura obrigatória.

    Parabéns por sua resenha
    com certeza volto para conferir outras
    Uma ótima noite!

    Pandora
    Pan's Mind

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    1. Olá!
      Que bom saber que conquistei mais uma leitora para Orlando, é bom quando gostamos de um livro e conseguimos cativar as pessoas para lê-lo :)

      Obrigada!

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  6. Olá! Encontrei seu post através do grupo BLOGS LITERÁRIOS, e decidi ler a resenha porque no ano passado li o livro As Ondas, minha primeira e única leitura da Woolf. Achei a escrita tão singular, que pensei: tenho que conhecer outros livros dela!
    E pela sua resenha, estou impressionada! Imagino que na época em que o livro foi escrito, deve ter causado certa polêmica, por abordar todos esses temas polêmicos. Já estou super interessada no livro, e vou procurá-lo para ler!
    Parabéns pela resenha maravilhosa, e adorei seu blog!

    http://loucura-por-leituras.blogspot.com.br/

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    1. Olá! Dizem que esse livro é o ideal para se começar a ler Virginia Woolf, realmente não achei tããão complexo, esperava ser mais difícil, haha. Mas realmente a escrita dela é singular, talvez um tiquinho parecida com a da Clarice Lispector, mas, ainda assim, inigualável!

      Também acho que foi polêmico, se hoje em dia esses temas ainda são tabus, imagina naquela época!

      Obrigada!

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  7. Nossa, pareceu muito interessante! Eu morro de vontade de ler os livros dela desde que vi uma edição com a obra completa toda lindona. E também sou curiosa por causa do filme (que eu ainda não vi) Quem tem medo de Virgínia Woolf? Eu achei a proposta deste livro sensacional, e em tempos de textões feministas no facebook, acho que se tornou uma leitura praticamente obrigatória, baseando-se pela proposta. Já está na lista de leitura. Sua resenha me deixou muito curiosa para ler!
    http://virtualcheckin.blogspot.com

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    1. Olá, Lívia!
      Não conheço nenhuma das obras e o filme que você citou, mas fiquei curiosa também para ver o filme Orlando com a atriz Tilda Swinton, que parece ser bem fiel.

      Tomara que você leia em breve e me conta o que achou!

      Beijos!

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  8. Sou doida para ler Orlando e Mrs. Dalloway, mas, por hora, estou lendo apenas os ensaios da Sra. Woolf! Adorei a sua resenha! Tenho duas da autora publicadas no meu blog até agora, mas a vontade é de ler toda a sua obra!

    http://www.tamiresdecarvalho.com/tag/virginia-woolf/

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    1. Oi, Tamires! Mrs. Dalloway está na minha lista de desejados também, depois de ler Orlando, com certeza a minha vontade de ler mais da Virginia aumentou!

      Obrigada! Vou conferir seu blog ^^

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  9. Que história interessante! Principalmente essa percepção de Orlando quando percebe que, mudando de sexo, muita coisa em relação ao seu comportamento teria de mudar, segundo a sociedade.

    Bem que os homens poderiam ser mulher por um dia, só pra perceberem como é, assim como ele percebeu, né? Hahahah

    Fiquei com ainda mais vontade de ler, a resenha ficou ótima. Uma análise muito boa do livro.

    Beijos!

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    1. Sim, a parte em que ele se torna ela, mulher, é a ais legal do livro, quando ele percebe essa diferença no tratamento, muito bom. Você vai adorar a leitura!

      Júlia, já pensou um homem viver um dia no corpo de uma mulher? Ia ser muito engraçado, mas seria muito bom para eles verem que mulher sofre: é assédio, pressão para ser bonita, preconceito etc...

      Obrigada, bjs!

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  10. Chegou em nossa loja um exemplar desse livro e por curiosidade é justamente essa da foto do blog. Gostei muito dos comentários. Maria Elisa. Sebo e Gibiteca Tunel do tempo - Tatui-SP

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    1. Oi, Maria Elisa. Tudo bem?

      Muito obrigada pelo comentário.

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  11. Olá Hel,
    Eu não sabia que você já tinha lido e resenhado "Orlando". Eu sou apaixonado pelas obras da Virginia, mesmo sem ter lido todas. Acho o jeito que ela escreve, as histórias, o modo como ela atrai o leitor para as tramas extraordinário. Não são leituras fáceis e como você ressaltou bem ali em cima, ela divaga demais e se a gente não se atenta na história, acabamos perdidos e sem compreender nada. Eu não sabia nada sobre "Orlando" e estou super curioso com essa obra. Espero lê-la em breve.
    Recomendo a você que leia os contos dela que são excelentes. Terminei de ler uma coletânea por esses dias e estou encantado.

    Beijos,

    Leonardo - Brainstorm

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    1. Oi, Leonardo. Tudo bem?

      Muito obrigada pela indicação. Realmente nunca mais li nada da autora, mas pretendo continuar conhecendo-a.

      Abraço,

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