O apanhador no campo de centeio - J. D. Salinger

“- E a vida é um jogo, meu filho, a vida é um jogo que se tem de disputar de acordo com as regras.
- Sim, senhor, sei que é. Eu sei.
Jogo uma ova. Bom jogo esse. Se a gente está do lado dos bacanas, aí sim, é um jogo – concordo plenamente. Mas se a gente está do outro lado, onde não tem nenhum cobrão, então que jogo é esse? Qual jogo, qual nada.” (p. 14)

Olá, leitores! Hoje eu venho mais uma vez com uma resenha de um livro que entrou para os meus favoritos da vida (mais um, Helena?), sim, mais um livro que eu terminei de ler e tenho vontade de guardar num potinho. O apanhador no campo de centeio é um romance de formação escrito pelo Nova iorquino Jerome David Salinger e publicado em 1951, um clássico. Vocês já devem ter ouvido falar, não? Eu sim, mas confesso que tinha formado uma ideia completamente diferente do enredo do livro na minha cabeça, muito diferente mesmo. Eu achava que o livro era muito difícil e que teria um vocabulário rebuscado, que nada! O narrador é um adolescente e a linguagem é a mais simples possível, cheia de gírias e até palavrões!

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O protagonista é Holden Caulfield, um adolescente de 16 anos que reclama de tudo e de todos e que narra um fim de semana de sua vida, logo após ter sido expulso (de novo) do internato onde estudava, o Pencey. Ao invés de esperar seus pais o buscar na quarta-feira, ele decide ir para casa sozinho, no sábado, e, então, passa por algumas confusões no caminho. 

“Estou sempre dizendo ‘Muito prazer em conhecê-los’ para alguém que não tenho nenhum prazer em conhecer. Mas a gente tem que fazer essas coisas para seguir vivendo.” (p. 89)

O enredo do livro, aqui neste caso, é o que menos importa. O apanhador no campo de centeio é um daqueles livros em que a beleza está fora dele, nas reflexões que ele proporciona ao leitor. E o leitor que não perceber essas sutilezas por trás das "reclamações" de Holden pode cometer o erro de classificar o livro como "chato". É fato que Holden critica muito os adultos e pessoas que o cercam, ele os acha hipócritas e falsos, acha que vivem de aparências e que não vivem de acordo com o que gostariam de realmente ser. Isso pode ser interpretado como o medo que Holden tem de se tornar como eles quando se tornar adulto, eu gosto de comparar Holden a Peter Pan, uma criança que tem medo de crescer.

“Há coisas que deviam ficar do jeito que estão. A gente devia poder enfiá-las num daqueles mostruários enormes de vidro e deixá-las em paz. Sei que isso não é possível, mas é uma pena que não seja.” (p. 121)

E é engraçado que as únicas pessoas que Holden se refere com carinho durante a estória são crianças, seus irmãos: Allie, que faleceu, e Phoebe, sua irmãzinha mais nova. E é durante um diálogo que ele tem com a irmã que ele faz uma das revelações mais belas do livro, mais ou menos o que ele quer ser "quando crescer":

"[...] fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de alguma coisa num baita campo de centeio e tudo. Milhares de garotinhos, e ninguém por perto - quer dizer, ninguém grande - a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o quê que eu tenho de fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer." (p. 168)

E essa é a metáfora do livro, linda, e triste. Para Holden, a infância é um campo de centeio, onde as crianças brincam felizes e livres. Ele é o único adulto ali por perto, e sua função é impedir que as crianças caiam no abismo, o abismo simboliza a vida adulta. Mas claro, essa é a minha interpretação, cada livro se mostra novo nas mãos de um novo leitor, e espero que vocês possam ler O apanhador no campo de centeio, não pensem que eu estraguei a leitura por "explicar" o título. Como eu falei, a beleza deste livro está fora dele, na bagagem de cada leitor, não só na bagagem literária, como também de vivência.
O melancólico Holden Caulfiled e seu cigarro e chapéu inseparáveis.
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Quando esse livro foi lançado, houve bastante polêmica, não só por Holden ser um adolescente petulante, que fala sobre sexo, garotas, fuma o tempo todo e fala muitos palavrões, mas pela ousadia de Salinger ao se expor num relato de adolescente quase autobiográfico. O livro foi um best-seller e Salinger se tornou recluso e recusou-se a ficar sob os holofotes que a fama do livro o colocaram. É compreensível, já que ele deu voz a toda uma geração que, assim como Holden, tinha inseguranças e dúvidas. Além disso, criticou a classe burguesa americana e o modo como viviam nos anos 50, pelo ponto de vista de um adolescente rebelde e desorientado, que procura respostas e que não as encontra. Apesar da referência à época e aos costumes, O apanhador no campo de centeio se mantém atemporal, e apesar de os adolescentes se verem representados na mídia com muito mais frequência nos dias de hoje, a leitura desse livro ainda encanta e traz reflexões muito fascinantes. Se eu indico essa leitura? Mas é óbvio! Eu não sei porque esse livro ficou tanto tempo parado na minha estante e só fui lê-lo para um trabalho da universidade, que vergonha.
Foi impossível ler esse livro e não comparar Holden a dois personagens que também conheci recentemente: Paloma de A elegância do ouriço e Sinclair de Demian. São três personagens adolescentes, que buscam autoconhecimento e que têm pensamentos profundos e críticos em relação ao mundo e pessoas que os cercam. Paloma e Holden têm medo de se tornarem adultos hipócritas, acho que os dois poderiam ter sido bons amigos. Já Sinclair, assim como Holden, está nessa busca por respostas que por vezes não são satisfatórias, mas não sei se eles seriam amigos, é bem capaz de Holden o achar "phony". E em comparação com Demian que eu acabei dando 4 estrelas para O apanhador no campo de centeio no Skoob, embora isso não tenha impedido de eu o adicionar aos meus favoritos, pode parecer estranho, mas é isso!

"Bom mesmo é o livro que quando a gente acaba de ler e fica querendo ser um grande amigo do autor, para se poder telefonar para ele toda vez que der vontade. Mas isso é raro de acontecer." (p. 23)

Bem que eu queria ter sido amiga do J. D. Salinger...

Beijinhos, Hel.

SALINGER, J. D.. O apanhador no campo de centeio. (Tradução de Álvaro Alencar, Antônio Rocha e Jório Dauster). 13ª ed. Rio de Janeiro: Editora do autor, 1999. 208 p.

A elegância do ouriço - Muriel Barbery

"[...] pensei que, afinal, talvez seja isso a vida: muito desespero, mas também alguns momentos de beleza em que o tempo não é mais o mesmo." (p. 350).

O texto de hoje não pode nem ser considerado uma resenha. Vai ser algo próximo a uma ode, uma homenagem, ao livro A elegância do ouriço. Existem alguns livros que eu leio e os coloco na categoria life changing book, ou seja, aqueles livros que, de um modo ou de outro, me fizeram refletir muito e que me deixaram uma profunda impressão. Esse é o caso deste livro maravilhoso:

Nunca havia lido nada da autora e agora quero ler tudo!
Toda a narrativa é ambientada num condomínio de luxo, no qual as duas protagonistas moram. Uma é Paloma, uma menina de doze anos proveniente de uma família rica. Paloma é uma menina muito, MUITO inteligente, mas seus pais e sua irmã sequer notam isso e acham que ela é esquisita. A verdade é que ela é uma menina muito consciente da podridão do mundo, digamos, e sabe muito bem que a vida não é um mar de rosas, baseada nas observações comportamentais que faz das pessoas próximas a ela. Sendo assim, ela decide que, no aniversário de treze anos, vai cometer suicídio e incendiar o apartamento. Dramático? Sim. A única coisa que a impediria de por em prática esse seu plano seria se ela encontrasse um sentido para a vida antes.

"Fico pensando se não seria mais simples ensinar desde o início às crianças que a vida é absurda."(p. 20)

A outra protagonista é Renée Michel, a concierge (porteira, zeladora) do condomínio, uma senhora viúva, baixinha, gordinha e que os moradores tratam como é de se esperar que os ricos tratem os subalternos: com desprezo. Renée sabe de sua condição de invisibilidade no ambiente em que vive, o que ninguém sabe é que ela é uma verdadeira intelectual: lê alta literatura e aprecia arte e música. Tem até um gato chamado Leon (em homenagem a Tolstói). Ela constrói um disfarce para que todos acreditem que ela é uma medíocre concierge, aproveitando o estereótipo da sua profissão e classe social:

"A Sra. Michel tem a elegância do ouriço: por fora, é crivada de espinhos, uma verdadeira fortaleza, mas tenho a intuição de que dentro é tão simplesmente requintada quanto os ouriços, que são uns bichinhos falsamente indolentes, ferozmente solitários e terrivelmente elegantes."(p. 152)

Eu achei essa comparação feita por Paloma muito sublime, poética demais! E pelo visto vocês podem perceber que a identidade secreta de Renée foi desvendada! Esta é uma das reviravoltas da estória, quando Paloma e o novo e misterioso morador do condomínio, o Sr. Ozu, unem suas suspeitas e chegam à conclusão de que Renée não é uma simples concierge. A partir daí, uma amizade, à primeira vista improvável, surge entre os três, e é lindo!

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Toda a escrita do livro é feita em forma de romance epistolar, o que faz com que o leitor sinta-se íntimo das protagonistas e consiga entender seus dilemas, o contexto de suas vidas e o que motiva suas decisões.  Quero dizer que Paloma e Renée são duas personagens muito cativantes - não vou nem citar o fato de que elas gostam de gatos, literatura e gramática - e, apesar de diferentes entre si,  uma rica e criança, outra pobre e adulta, possuem muitas coisas em comum. E essa perspectiva que o livro traz, para mim, é a mensagem mais importante: ricos ou pobres, todos nós somos iguais. Aquilo que somos não é ditado pelas aparências. Não importa se moramos em um apartamento de 400 metros quadrados ou em uma casinha de porteiro, os problemas e as angústias são inerentes ao ser humano e não escolhem classe social, cor, nacionalidade... A felicidade é uma quimera a qual todos nós corremos atrás. Quem nunca se perguntou qual é o sentido de tudo o que vivemos, e porque estamos aqui, qual o propósito de tanto sofrimento e luta se a existência nessa Terra é finita!? 
De início o leitor pode até questionar: "Do que essa menina mimada está se queixando? Muitos sonham em ter a vida que ela tem!" ou "De que adianta estudar e ler tanto se ninguém se importa com isso, se ninguém repara?". Eu digo que a leitura vale a pena cada vírgula!

A edição que li foi gentilmente emprestada pela Paula, do blog Caçando ouriços, que depois de muitos argumentos me convenceu que esse é um livro incrível. Agora eu quero comprar uma edição para mim e guardá-la num potinho 

Dentre as reflexões que o livro propõe, uma delas é a crítica a uma sociedade que vive de aparências, principalmente à classe "nobre", cujos modos de vida são superficiais. Paloma, em certo momento, justifica a vontade de deixar este mundo, pois já sabe o destino que a aguarda: casar com um homem rico, de família, e levar uma vida muito parecida com a da sua própria mãe, que é escrava dos antidepressivos e que mascara sua infelicidade servindo chás às amigas e cuidando das plantas. É compreensível que Paloma sinta-se insatisfeita com a vida diante do que ela relata ao leitor.

"Não se deve esquecer que o corpo definha, que os amigos morrem, que todos nos esquecem, que o fim é solidão. Esquecer muito menos que esses velhos foram jovens, que o tempo de uma vida é irrisório, que um dia temos vinte anos e, no dia seguinte, oitenta." (p. 138).

Esse é mais um livro que eu leio por indicação (da Paula que escreve no Caçando ouriços e que ama tanto o livro que batizou o blog assim!) e que vai direto para minha lista de favoritos da vida. O dilema da minha leitura foi querer saber o desfecho e se Paloma se suicidaria, mas, ao mesmo tempo, não querer que a estória chegasse ao fim, pois eu previa um final pesado e triste, afinal, toda a narrativa se encaminhava para isso. Mas eis que ao fim, quando tudo estava quase um mar de rosas... bom, não revelarei o que acontece, só digo que terminei a leitura aos prantos e que o fechamento da estória me deixou completamente surpresa e desidratada. Se você gosta de drama e se gosta de livros que são reflexivos, filosóficos e que utilizam metaliteratura, que é quando a literatura fala da própria literatura como elemento da narrativa, ou seja, livros que falam sobre livros , esse é o livro certo para você! Se resolver embarcar nessa leitura linda, prepare os post-its, afinal são muitas citações memoráveis, e uma caixa de lencinhos, porque vai precisar! Posso dizer que o livro tem uma temática pesada, e que muitas vezes, enquanto lia, me senti triste e melancólica, mas, mesmo assim, é desse tipo de livro que gosto. Gosto de livros que cutucam a ferida, livros que me fazem pensar e que me tiram da zona de conforto. E A elegância do ouriço é tudo isso e muito mais; é poético, é belo, é emocionante, faz rir e chorar, é irônico e também provocador. É meu mais novo livro favorito! Depois de tudo isso eu preciso dizer que eu recomendo esse livro? 

Beijinhos, Hel.

BARBERY, Muriel. A elegância do ouriço. (Tradução de Rosa Freire d´Aguiar). São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 350 p.

Demian - Hermann Hesse

"Muitos se recusarão a acreditar que uma criança de onze anos incompletos possa sentir dessa maneira. Não é para esses que escrevo, mas para aqueles que conhecem melhor o ser humano. O adulto, que aprendeu a converter em conceitos uma parte de seu sentimento, menospreza tais conceitos na criança e termina por optar que não existiram também os sentimentos que lhe deram origem."
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É muito difícil escrever sobre esse livro. Ponto. Demian, apesar de não tratar de tantos temas, se mostrou, para mim, um livro tão rico e tão bem escrito, que sinto que por mais que eu tente não conseguirei dar conta de mostrar o quanto essa leitura me fez refletir e o quanto fiquei arrebatada com ela. Hermann Hesse traz uma narrativa com uma ambientação via de regra psicológica, ou seja, muitos dos acontecimentos se dão por meio das reflexões do protagonista, nos quais o narrador conta de seu passado, desde o fim da infância e da dualidade do mundo que o atormentava entre escolher seguir a vida ortodoxa dentro do seio familiar a seguir a vida sombria entre os amigos da escola, principalmente Max Demian, que surge na vida de Sinclair e o influencia de tal modo que o faz ver o mundo de modo totalmente diferente, em uma missão na busca incessante de autoconhecimento, de encontrar a si mesmo. A obra retrata fielmente um período da vida que é tão inquietante, em que começa-se a formular o caráter, além dos questionamentos típicos da pré-adolescência, das inseguranças e, principalmente, apresenta um período em que a amizade e a influência dos amigos nos parecem, muitas vezes, mais relevantes que a de nossos pais e familiares.

O protagonista é Sinclair e está passando por essa fase de transição da infância para a adolescência. Criado em uma família tradicional, religiosa e ortodoxa, ele se vê o tempo todo dividido entre dois mundos: o "mundo luminoso", do lar, do amor, da tranquilidade, aquele em que ele se sentia acolhido pelo amor familiar e o mundo sombrio, do desejo, da sexualidade.

"Eu me considerava muito mais próximo do mundo obscuro, e o contato com o mal se fazia sentir em mim muitas vezes por uma dolorosa angústia."

No início ele se envolve em uma grande enrascada por querer provar aos "amigos" que era corajoso. Ele mente para se vangloriar na frente dos outros meninos, dizendo que havia roubado maçãs, e acaba sendo chantageado por um menino mais velho e perigoso, Kromer, que ameaça contar a todos o que Sinclair "fez". Então, aparece Demian, que misteriosamente o livra das extorsões de Kromer, fazendo com que Sinclair fique ainda mais fascinado do que já era pela figura de Demian, o novo colega de escola:

"Não podia dizer que Max Demian me parecesse simpático; ao contrário, dava-me a impressão de ser frio, um tanto orgulhoso e demasiadamente seguro de seu próprio valor; eu sentia que seus olhos já viam as coisas como os olhos de um adulto, com aquela expressão, um tanto melancólica, sulcada de relâmpagos de ironia que nunca se encontra nas crianças."

Demian exerce forte influência sobre Sinclair, de modo que este último passa a viver uma espécie de idolatria pelo amigo, que apresenta a ele novas ideologias, entre elas a de que há um deus em que ambos os lados da existência humana são cultuados: o lado sombrio e o lado luminoso. E isso atrai Sinclair de modo muito particular. Demian mostra a Sinclair todo um mundo novo, muito diferente do que ele vivia anteriormente:


"Demian afirmara por aquela época que o Deus a que rendíamos culto representava apenas a metade do mundo, arbitrariamente dissociada (o mundo oficial e permitido, o mundo "luminoso"), e assim, para podermos adorar o mundo em sua totalidade, como era necessário, forçoso era buscar um deus que fosse ao mesmo tempo demônio, ou estabelecermos, junto ao culto divino, também um culto demoníaco."

A verdade é que não foi Demian quem mudou a personalidade de Sinclair, mas somente fez brotar no amigo algo que já havia ali só esperando para ser tocado. A partir dessa pulga que Demian coloca atrás da orelha de Sinclair, o protagonista passa a viver sempre em busca de conhecer a si mesmo, a sair da casca, nascer para o mundo. E mesmo que ambos passem longos períodos sem se ver ou ter contato de espécie alguma, Demian está sempre ali, presente nos pensamentos e atitudes de Sinclair, desde o momento em que o conheceu até seus dezoito anos, que é o momento da vida do protagonista em que a narrativa se encerra.

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Tão difícil quanto apontar os aspectos negativos de um livro é elogiá-lo. Demian foi uma leitura que me deixou extasiada e que, acredito e recomendo, deve ser lido por todos os apreciadores de boa literatura. Demian é um personagem tão maravilhoso que em certo momento eu me vi experimentando também uma idolatria por ele, ao me lembrar das pessoas que me influenciaram a ser quem eu sou hoje em dia. E acredito que essa seja uma das mensagens que a estória passa: ao longo de nossas vidas encontramos muitas pessoas que acabam por ajudar a moldar nossas personalidades e que deixam marcas profundas em nossas memórias, assim é Demian para Sinclair. Além disso, refleti sobre a vida que levamos, por meio da narrativa de Hesse, que por mais que tenha sido publicada no início do século passado, se mostra atemporal:

"O que hoje existe não é comunidade: é simplesmente o rebanho. Os homens se unem porque têm medo uns dos outros e cada um se refugia entre seus iguais: rebanho de patrões, rebanho de operários, rebanho de intelectuais... E por quê têm medo? Só se tem medo quando não se está de acordo consigo mesmo."

Questões sobre individualidade e coletividade são lançadas durante a narrativa, como na citação acima, na qual Demian versa sobre o que nos torna uma comunidade: o medo. E propõe que busquemos a nossa essência, citando Nietzsche com exemplo a ser seguido. Demian, por ser um romance de formação, é rico no desenvolvimento pessoal do protagonista Sinclair que, do início até o final da estória, possui um desenvolvimento psicológico visível. Antes de ler Demian, eu não imaginava que existia uma nomenclatura para romances que se passam durante a vida escolar e que abordam as questões da formação dos personagens, e isso me deixou muito fascinada, pois se há um momento interessante da vida do ser humano, um deles é esse em que transitamos entre a vida jovem para a adulta. De fato, com certeza lerei mais romances de formação, pois adoro ler sobre esses dilemas típicos da adolescência e que costumam se mostrar muito filosóficos.
Bom, falei que o livro não abordava muitos temas, mas a verdade é que ele aborda as várias nuances de um mesmo e causou, em mim, muitas reflexões.
Leiam Demian, é o que vos apelo, se querem conhecer uma obra que fale da natureza humana com maestria.

“Quem quiser nascer tem que destruir um mundo”

Beijinhos, Hel.

HESSE, Hermann. Demian. 37. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006. 188 p. Tradução de Ivo Barroso.

Escritores e gatos - Charles Baudelaire

Olá, leitoras e leitores! Já estavam com saudade dos gatinhos por aqui? O escritor que eu trago hoje gostava tanto de gatos que escreveu poemas em homenagem. Mas ele não seria o primeiro, não é mesmo? Eu estou falando de Charles Baudelaire:


Baudelaire é conhecido por seus poemas "polêmicos", e eu confesso que li pouco da sua obra, alguns poemas aqui, umas prosas poéticas ali, até que me deparei com esse poema:

Os gatos

Os amantes febris e os sábios solitários
Amam de modo igual, na idade da razão,
Os doces e orgulhosos gatos da mansão,
Que como eles têm frio e cismam sedentários.

Amigos da volúpia e devotos da ciência,
Buscam eles o horror da treva e dos mistérios;
Tomara-os Érebo por seus corcéis funéreos,
Se a submissão pudera opor-lhes à insolência.

Sonhando eles assumem a nobre atitude
Da esfinge que no além se funde à infinitude,
Como ao sabor de um sonho que jamais 
                                        termina;

Os rins em mágicas fagulhas se distendem,
E partículas de ouro, como areia fina,
Suas graves pupilas vagamente acendem.


Quem arrisca ler em francês, aqui está o original:


Les chats

Les amoureux fervents et les savants austères
Aiment également, dans leur mûre saison,
Les chats puissants et doux, orgueil de la 
                                        maison,
Qui comme eux sont frileux et comme eux 
                                        sédentaires.

Amis de la science et de la volupté
Ils cherchent le silence et l'horreur des 
                                        ténèbres ;
L'Erèbe les eût pris pour ses coursiers funèbres,
S'ils pouvaient au servage incliner leur fierté.

Ils prennent en songeant les nobles attitudes
Des grands sphinx allongés au fond des 
                                        solitudes,
Qui semblent s'endormir dans un rêve sans fin ;

Leurs reins féconds sont pleins d'étincelles 
                                        magiques,
Et des parcelles d'or, ainsi qu'un sable fin,
Etoilent vaguement leurs prunelles mystiques.

Olha, esse poema me fez ver um lado mais sombrio e obscuro dos gatinhos, não é? Baudelaire associa aos gatos adjetivos como solitários, orgulhosos... E ainda os associa à ciência e à volúpia. Não sei se vocês costumam fazer isso, mas quando eu leio um poema eu tento extrair uma imagem ao fim da leitura. Lendo Os gatos eu pensei em um gato preto, bem misterioso, com o pelo lustroso, deitado em uma poltrona. Loucura? Não sei, mas o que sei é que esses bichanos encerram em si muitos mistérios e são de longe os seres mais enigmáticos do mundo animal.



Beijinhos e lambeijos, Hel.

BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Edição bilíngue. Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

Má feminista - Roxane Gay

Má feminista é um livro que, apesar do que o título pode sugerir, não trata somente do feminismo, como também, de diversos temas que envolvem as mulheres e a sua representação na sociedade, literatura, mídia etc.. Esse hibridismo é a característica mais forte do livro, pois, pelo prisma do feminismo, Gay consegue apontar diversos outros temas que diretamente se relacionam a ele, nos guiando por exemplos. Estes exemplos que a autora traz, para mim, são a parte mais interessante do texto todo, sendo que ela usa séries como Girls, Law&Order: SVU, livros como Garota exemplar, a trilogia Jogos Vorazes e Cinquenta tons de cinza, além de diversos outros produtos culturais para mostrar como a mulher vem sendo representada na atualidade. Além de tudo isso, os ensaios são muito intimistas, pois, ao longo do livro, Gay, enquanto mulher negra e imigrante haitiana morando nos EUA, relata momentos da vida dela (como o estupro que ela foi vítima na adolescência e o preconceito que sofreu na universidade) para mostrar a relação dela com o feminismo.


O livro é dividido em seções, sendo elas: Eu; Gênero e sexualidade; Raça e entretenimento; Política, gênero e raça e De volta ao meu eu. Cada seção traz diversos ensaios relacionados e discussões muito pertinentes.
Na primeira seção, então, Gay vai falar sobre a relação que ela tem com o feminismo, porque se considera uma má feminista e como ela vê o movimento:

"Na verdade, justifica-se a imperfeição do feminismo por ele ser um movimento alimentado por pessoas, e estas são inerentemente imperfeitas. [...] Adoto abertamente o rótulo de má feminista. E faço isso porque sou imperfeita e humana. Não sou perita em história do feminismo. Também não sou, como gostaria, perita na leitura de textos feministas fundamentais. Tenho alguns... interesses, peculiaridades de personalidade e opiniões que podem não se alinhar com o feminismo tradicional, mas, mesmo assim, ainda sou uma feminista.." (p. 8)

Na seção Gênero e sexualidade, a autora fala sobre a representação da mulher na mídia e como isso tem nos prejudicado, ela também questiona a falta de representatividade não só da mulher, como também da mulher negra e fora dos padrões estéticos.

"Existem poucas oportunidades para as pessoas de cor se reconhecerem na literatura, no teatro, na televisão e no cinema." (p. 64)

Um termo que eu não conhecia e que a autora apresenta no texto é o termo "negro mágico", em inglês magical negro. Esse termo é designado para um personagem negro que aparece na trama só para salvar a pele do branco, aquele lugar-comum que tantas vezes vimos em filmes. O negro é o que morre primeiro. É o melhor amigo do protagonista branco. O personagem secundário que se sacrifica para o bem maior dos outros (brancos). E por aí vai. Esse artifício é usado tantas vezes que não é de se assombrar que já tenha um termo para designá-lo. E o que é mais triste é que até hoje isso ainda é usado. Enquanto eu lia essa parte do livro, consegui lembrar de pelo menos três filmes/séries em que esse personagem aparece.

Sem falar na representação da mulher: sexista, objetificada. A autora vai trazer, em sua análise, algumas protagonistas mulheres que fogem desse padrão, como é o caso de Amy, do livro Garota exemplar, ela é representada como uma mulher desagradável, vingativa, que foge do estereótipo de que as mulheres PRECISAM ser amáveis e aturar as traições de seus maridos. É um verdadeiro tapa na cara da sociedade. A escritora de Garota exemplar traz uma personagem humana. E Gay traz à tona o fato de que anti heróis são muito mais aceitos pela sociedade e pela crítica do que as anti heroínas. Enfim, esses são alguns exemplos que Gay traz e que comprovam como as mulheres e os negros têm sido usados para apagar seu protagonismo na mídia. Afinal de contas, você não vai poder dizer que determinado filme ou livro não tem uma mulher ou um negro no elenco, eles estão lá sim!
Algo que a Julya me falou, enquanto discutíamos essa questão, é que, aqui no Brasil, é fácil perceber que as novelas que concentram maior número de negros em seus elencos são aquelas em que o enredo envolve ou o período da escravidão no Brasil, ou o contexto das favelas. Diante disso eu não preciso falar mais nada, não é?

Na seção Raça e entretenimento, a autora fala mais pontualmente de alguns filmes com personagens negros os quais ela assistiu e como ela se decepcionou. Histórias cruzadas (2011), Django livre (2012) e 12 anos de escravidão (2013) são filmes que, apesar das premissas terem se mostrado inovadoras para ela, foram uma decepção. Apesar de os filmes em questão serem protagonizados ou focados em negros, eles continuam reforçando aquela velha ideia de que os brancos é que salvam os negros no final, além de usarem do sofrimento dos negros (físico e emocional) para atingir o "coração do público", realçando cenas em que os negros sofrem, são humilhados, agredidos, para Gay, isso é sofrimento demais e ela já está cansada disso. Eu imagino.

Há também a discussão sobre "cultura do estupro" e sobre como o estupro vem sendo representado nos livros, jornais, televisão etc. erroneamente. Para ilustrar essa afirmação, a autora cita o caso de uma menina de onze anos estuprada por dezoito homens no Texas (um estupro coletivo, vejamos, isso aconteceu há pouco tempo no Brasil) e como um artigo do The New York Times tratou do assunto: preocupado com a cidade, cujos moradores nunca mais seriam os mesmos e, pasmem, os dezoito rapazes também nunca mais seriam os mesmos. É sério isso? Não sei porque eu fico surpresa. E a vítima onde fica?

"Houve discussão sobre o fato de a menina de onze anos, a criança, vestir-se como se tivesse vinte, deixando implícita a possibilidade de que uma mulher possa "pedir por isso" e também de que, de alguma forma, é compreensível que dezoito homens estuprem uma menina." (p. 132)

Eu, na minha ignorante concepção de mundo, achava que discussões como a da cultura do estupro existissem somente no Brasil. Ledo engano. Nós, mulheres, não estamos seguras em parte alguma. A autora sugere, inclusive, que troquemos o termo por "Cultura de estupradores", pois quem sabe, assim, as pessoas tenham uma ideia mais clara da dimensão do problema.

Enfim, posso dizer que os temas que a autora traz são de extrema importância e precisam ser discutidos o quanto antes. Pois é visível que ser mulher, apesar dos avanços que foram feitos em relação à igualdade de gênero, ainda é muito perigoso. Enquanto a mídia continuar objetificando-nos e tratando casos de estupro com trivialidade, induzindo-nos a pensar que a vítima é a culpada, nada disso vai mudar.

***

Fiquei muito presa a essa leitura, não posso negar, pois, assim como a Roxane Gay, também me considero uma má feminista, logo, tenho tentado cada vez mais me aprofundar para entender o movimento feminista. Posso dizer que essa leitura me abriu os olhos para muitas coisas e me fez aumentar minha empatia em relação às mulheres negras, já que pude ler o relato de uma, a própria autora. Isso me lembra a sororidade .

Antes de terminar, preciso fazer um pequeno comentário à edição. Encontrei alguns erros de revisão, oito, para ser mais exata, erros de descuido mesmo, nada em relação à grafia. Outra coisa que me incomodou foi a tradução. Às vezes, eu sentia que aquilo não tava bem traduzido, dava para saber certinho o que estava escrito no original, porque não soava como português, em alguns momentos dava para sentir que a sintaxe e a prosódia eram do inglês. Eu imagino que a estilística da autora, no original, fosse algo que beirasse o linguajar jovem, com gírias e muitas expressões da língua inglesa, por isso, eu imagino que para a tradutora deve ter sido muito difícil traduzir esse livro, já que, se ela optasse por uma adaptação cultural... Não, ela nem deveria cogitar a ideia de tradução por adaptação cultural. Enfim, foi por esses dois motivos que eu dei 4 estrelas ao livro no Skoob, que são referentes à edição e não à obra. Agora vou parar porque meu pequeno comentário já está tão grande quanto um dos volumes de As crônicas de gelo e fogo, haha.


Beijinhos, Hel.

GAY, Roxane. Má feminista: ensaios provocativos de uma ativista desastrosa. 1ª ed. São Paulo: Novo Século Editora. 2016. 312 p. Tradução de Tássia Carvalho.

Um ano de Leituras&Gatices | SORTEIO

💜Olá, leitoras e leitores!💜 Hoje o post é especial demais, venho anunciar o sorteio de UM ANO do Leituras&Gatices! E é claro que vai rolar livro, marcadores, flags... Todas essas coisas que nós, leitores, adoramos! Para concorrer é simples demais, é só preencher o formulário Rafflecopter no final deste post e seguir as regras! Pronto!


Este é o kit que o sorteado vai levar para casa, contendo um exemplar do livro A guardião de histórias, marcadores de algumas das editoras e autores parceiros do blog, um kit de flags e um bloquinho com lápis da autora parceira do blog, Louise Bennett.


Quem ainda não sabe do que o livro A guardiã de Histórias se trata, tem uma resenha aqui no blog. Você pode acessá-la clicando aqui.

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Quem diria que aquele projetinho da minha cabeça, um blog literário, fosse ganhar forma e que pessoas o leriam!? Gente, vocês não têm noção do quanto eu fico feliz a cada leitor novo, a cada comentário, cada compartilhamento nas redes sociais. Mas ainda mais feliz eu fico quando alguém vem me dizer que leu determinado livro por causa das minhas indicações aqui no Leituras&Gatices 💓
Desde que criei o L&G, minha vida não é mais a mesma, não existe um dia que eu não venha aqui olhar as novidades, acompanhar os blogs dos meus colegas de blogosfera, responder os comentários... Por isso, quero agradecer a algumas pessoas. Primeiramente, agradeço à Julya, por ter aceitado participar do blog como colaboradora, me ajudando a dar conta de deixar os conteúdos sempre em dia e por escrever resenhas tão maravilhosas. Quero agradecer à Paula, do Caçando ouriços, por sempre ler as minhas postagens, pela amizade e por me dar dicas de livros maravilhosos. Também quero agradecer à Tainan do blog Eu curto Literatura, minha guru nos assuntos "bloguísticos", que sempre tira minhas dúvidas e foi minha inspiração para criar esse espaço aqui. Agradeço também às meninas do Entrelinhas Fantásticas, Thalita, Denise e Jack, pela parceria e pela amizade. Ah, não posso deixar de agradecer às editoras parceiras do blog e aos autores parceiros, pela confiança depositada no meu trabalho! Um muito obrigada do tamanho da galáxia, em especial, a todos os meus leitores!
E é por isso que eu não poderia deixar de agradecer a vocês por isso tudo, este sorteio é uma forma simbólica de eu dizer MUITO OBRIGADA a cada pessoa que dispõe de um tempinho para ler o que eu escrevo aqui!

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Vamos às regras e ao formulário: 

  • O ganhador vai receber em casa os seguintes prêmios: 1 exemplar do livro A guardiã de Histórias, da editora Betrand Brasil + marcadores diversos + 1 cartela de flags coloridas+ 1 bloquinho com lápis do livro A  jovem Alessia;
  • A promoção começa no dia 4/8 e termina no dia 31/8, ao meio-dia;
  • É necessário seguir todas as etapas para concorrer aos prêmios (visitar o blog no Facebook, seguir o blog pelo GFC e seguir a Editora Record e o Leitura&Gatices no Twitter;
  • A promoção só é válida para o Brasil;
  • O nome do ganhador será divulgado aqui no blog e nas redes socias;
  • O ganhador deverá entrar em contato no período de cinco (5) dias via e-mail (helena.machado21@gmail.com)
  • Caso o ganhador deixe de cumprir qualquer uma das regras ele será imediatamente desclassificado e um novo sorteio será realizado;
  • O Leituras&Gatices é responsável por todo e qualquer custo de envio;
  • O  Leituras&Gatices não se responsabiliza em caso de danos, perda ou extravio pelos Correios;
  • Não será feito um novo envio do prêmio, então, certifique-se de que passará os dados corretos e haverá alguém disponível para recebê-lo;
  • O prêmio será enviado pelo Leituras&Gatices em até 30 dias úteis.

Espero que tenham gostado. Não esqueçam de convidar os amigos leitores de vocês para conhecer o blog e participar do sorteio!

 

Beijinhos, Hel.

Leituras de Julho + conclusão da maratona de férias

Olá, leitoras e leitores.
Hoje eu venho mostrar o que li no mês que passou e, também, falar um pouquinho sobre as leituras das férias, nas quais eu fiz uma pequena maratona para adiantar as leituras. No começo de Junho, eu postei aqui no blog um post em que eu mostrei a minha TBR de férias, a qual tinha sete livros como meta para este período que passou. Então, vou mostrar agora o que eu consegui ler:

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CONTOS DE AMOR, DE LOUCURA E DE MORTE - HORACIO QUIROGA (Hedra)


Esse foi o primeiro livro que finalizei no mês passado, mas que não estava na TBR das férias. A resenha já saiu e foi uma leitura muito legal! Confiram a resenha e vejam os contos que eu mais gostei.

FILHAS DE EVA - MARTHA MENDONÇA (Record)



Esse foi mais um livro de contos que li, a primeira leitura da maratona de férias concluída. Resenha aqui.

PRETÉRITO IMPERFEITO - GUSTAVO ARAUJO (Caligo)


Esse livro foi maravilhoso, fiquei muito feliz em ter aceitado a parceria com o autor Gustavo, a estória é linda! Confiram a resenha clicando aqui.

SILÊNCIO - RICHELLE MEAD (Galera Record)


Essa foi a leitura mais light da maratona, um YA bem levinho. Confiram a resenha clicando aqui.

DEMIAN - HERMANN HESSE (Record)

Essa foi a melhor leitura do mês, sem sombra de dúvidas. Fazia tempo (desde A cor púrpura) que eu não fazia uma leitura com um protagonista tão maravilhosamente INCRÍVEL, com uma narrativa tão bem escrita. Esse mês, ainda, sai a resenha no blog. De antemão, vocês já sabem que eu amei!

MÁ FEMINISTA - ROXANE GAY (Novo Século)


Para fechar a maratona de férias, eu li um romance de não-ficção sobre um tema que tenho me interessado a cada dia mais: feminismo. O título até pode dar a entender algo negativo, mas a leitura desfaz qualquer interpretação equivocada. Em breve a resenha sai aqui também.

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Resultado das férias: consegui ler seis livros, menos do que eu gostaria. Confesso que procrastinei muito e poderia ter lido mais, mas também precisei ler alguns livros teóricos para o TCC. Dos sete livros que estavam na TBR de férias, consegui ler cinco, um bom rendimento. Ademais, acredito que a qualidade das leituras foi ótima. E vocês? Leram bastantes livros nas férias? Fizeram maratona?

Beijinhos, Hel

Filhas de Eva - Martha Mendonça

"Nasci suja de sangue, mas de outro tipo. O vermelho da urgência da criação do mundo, da reprodução da espécie, da dor de ser a segunda, a coadjuvante, a frágil – e, ainda assim, ser o espaço humano desse repetido milagre que, depois de mim, não vai mais parar de acontecer, todos os dias, todas as horas e minutos, para sempre.
Assim, já formada e deformada pela falta de infância, aprendi logo que eu era a culpada. Pelo que houve e pelo que não houve: pelos barulhos e pelos silêncios; pela beleza e pela feiura; pelo passado e pelo futuro. Pelo desejo." (p. 5)

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O trecho acima faz parte do conto que abre o livro Filhas de Eva, publicado pela editora Record e escrito por Martha Mendonça, uma das autoras no site Sensacionalista. 
Intitulado Eva, este foi o conto que mais me chamou a atenção, não só por ser uma espécie de prelúdio dos contos que o seguem, mas também pela forte carga reflexiva que contém. Se pararmos para pensar na figura de Eva, aquela que detém o "pecado", veremos o quanto do julgamento feito a ela ainda cabe às mulheres atuais: somos secundárias, como já cunhado por Simone de Beauvoir, o segundo sexo. Ainda, somos sempre as "culpadas" pelo desejo que causamos no homem, eternamente julgadas "pela beleza e pela feiura" que carregamos. Somos frágeis, mas, ao mesmo tempo, temos que ser fortes. E é sobre mulheres, assim, de carne e osso, que Martha escreve em seus contos; protagonistas capazes de despertar no leitor sentimentos como empatia, mas cada qual com sua idiossincrasia. Não é difícil se identificar com algumas das mulheres dos dezoito contos que compõem o livro. A compulsiva, a apressada, a obcecada, a doméstica, a indecisa, a noiva e a amante, entre outras, são nuances das mulheres que somos e que conhecemos.

"Estava cansada daquele trabalho. Estava cansada do marido. Só não estava cansada dos filhos, porque isso seria pecado. Fechou os olhos e se forçou para pensar coisas boas: sol tão forte que arrepia a pele, primeiro dia de férias, só sinais verdes no caminho de casa, gol aos quarenta e cinco do segundo tempo, achar dinheiro no bolso [...] " (p. 25)

Cada conto traz uma mulher diferente, mas todas são semelhantes: todas têm dentro de si um emaranhado de sentimentos. Cada qual a seu modo. Desde a impulsiva, que não consegue parar de comer, até aquela indecisa que não sabe se casar é o que quer mesmo para sua vida. Desde a que não sabe se está na profissão certa, até a que é obcecada por um homem a ponto de cometer uma loucura. Mulheres inseguras com a aparência, com os "quilinhos a mais". Mulheres revoltadas com sua situação, com o desprezo e a solidão. São todas mulheres possíveis. 

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Filhas de Eva é um daqueles pequenos grandes livros, cujas curtas histórias comportam um mundo inteiro. Nunca vi contos tão curtos serem tão significativos, e causarem tanta reflexão em pouco mais de duas páginas. Me identifiquei com muitas das personagens, mesmo não sendo mãe, ou esposa,  ou amante, pelo simples fato de ser mulher e ter empatia pelas minhas iguais, ter a capacidade de me colocar no lugar delas. Além do conteúdo de qualidade, os contos são de leitura rápida, li em uma única sentada, e a diagramação é das mais agradáveis, além da revisão impecável.

"Por isso ela sempre gostou de gatos, seus companheiros de uma vida inteira. Seres que ela admirava, independentes, fortes, fechados em seus próprios interesses. Fiéis na solidão e no silêncio." (p. 99)

Me identifiquei muito com o trecho anterior, teria como não fazê-lo? Recomendo essa leitura para quem gosta de literatura sobre mulheres, textos curtos e incisivos, com uma pegada de crônica. As narrativas se alternam no estilo e na sensação que causam: alguns contos são divertidos, outros extremamente melancólicos, sem falar, claro, nos que possuem um veio mais crítico que, a meu ver, são os melhores. Acho que o momento é pontual para a leitura desse livro, digo, com a atual efervescência do movimento feminista. Acredito ser essa uma boa leitura para as mulheres que queiram se entender melhor e à realidade das outras já que, como eu disse, as protagonistas dos contos são todas mulheres possíveis, e, assim, exercer um pouco de empatia pelos sofrimentos e dilemas das nossas iguais.

Beijinhos, Hel.


MENDONÇA, Martha. Filhas de Eva. 1ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2016. 127 p.