Má feminista - Roxane Gay

11:00

Má feminista é um livro que, apesar do que o título pode sugerir, não trata somente do feminismo, como também, de diversos temas que envolvem as mulheres e a sua representação na sociedade, literatura, mídia etc.. Esse hibridismo é a característica mais forte do livro, pois, pelo prisma do feminismo, Gay consegue apontar diversos outros temas que diretamente se relacionam a ele, nos guiando por exemplos. Estes exemplos que a autora traz, para mim, são a parte mais interessante do texto todo, sendo que ela usa séries como Girls, Law&Order: SVU, livros como Garota exemplar, a trilogia Jogos Vorazes e Cinquenta tons de cinza, além de diversos outros produtos culturais para mostrar como a mulher vem sendo representada na atualidade. Além de tudo isso, os ensaios são muito intimistas, pois, ao longo do livro, Gay, enquanto mulher negra e imigrante haitiana morando nos EUA, relata momentos da vida dela (como o estupro que ela foi vítima na adolescência e o preconceito que sofreu na universidade) para mostrar a relação dela com o feminismo.


O livro é dividido em seções, sendo elas: Eu; Gênero e sexualidade; Raça e entretenimento; Política, gênero e raça e De volta ao meu eu. Cada seção traz diversos ensaios relacionados e discussões muito pertinentes.
Na primeira seção, então, Gay vai falar sobre a relação que ela tem com o feminismo, porque se considera uma má feminista e como ela vê o movimento:

"Na verdade, justifica-se a imperfeição do feminismo por ele ser um movimento alimentado por pessoas, e estas são inerentemente imperfeitas. [...] Adoto abertamente o rótulo de má feminista. E faço isso porque sou imperfeita e humana. Não sou perita em história do feminismo. Também não sou, como gostaria, perita na leitura de textos feministas fundamentais. Tenho alguns... interesses, peculiaridades de personalidade e opiniões que podem não se alinhar com o feminismo tradicional, mas, mesmo assim, ainda sou uma feminista.." (p. 8)

Na seção Gênero e sexualidade, a autora fala sobre a representação da mulher na mídia e como isso tem nos prejudicado, ela também questiona a falta de representatividade não só da mulher, como também da mulher negra e fora dos padrões estéticos.

"Existem poucas oportunidades para as pessoas de cor se reconhecerem na literatura, no teatro, na televisão e no cinema." (p. 64)

Um termo que eu não conhecia e que a autora apresenta no texto é o termo "negro mágico", em inglês magical negro. Esse termo é designado para um personagem negro que aparece na trama só para salvar a pele do branco, aquele lugar-comum que tantas vezes vimos em filmes. O negro é o que morre primeiro. É o melhor amigo do protagonista branco. O personagem secundário que se sacrifica para o bem maior dos outros (brancos). E por aí vai. Esse artifício é usado tantas vezes que não é de se assombrar que já tenha um termo para designá-lo. E o que é mais triste é que até hoje isso ainda é usado. Enquanto eu lia essa parte do livro, consegui lembrar de pelo menos três filmes/séries em que esse personagem aparece.

Sem falar na representação da mulher: sexista, objetificada. A autora vai trazer, em sua análise, algumas protagonistas mulheres que fogem desse padrão, como é o caso de Amy, do livro Garota exemplar, ela é representada como uma mulher desagradável, vingativa, que foge do estereótipo de que as mulheres PRECISAM ser amáveis e aturar as traições de seus maridos. É um verdadeiro tapa na cara da sociedade. A escritora de Garota exemplar traz uma personagem humana. E Gay traz à tona o fato de que anti heróis são muito mais aceitos pela sociedade e pela crítica do que as anti heroínas. Enfim, esses são alguns exemplos que Gay traz e que comprovam como as mulheres e os negros têm sido usados para apagar seu protagonismo na mídia. Afinal de contas, você não vai poder dizer que determinado filme ou livro não tem uma mulher ou um negro no elenco, eles estão lá sim!
Algo que a Julya me falou, enquanto discutíamos essa questão, é que, aqui no Brasil, é fácil perceber que as novelas que concentram maior número de negros em seus elencos são aquelas em que o enredo envolve ou o período da escravidão no Brasil, ou o contexto das favelas. Diante disso eu não preciso falar mais nada, não é?

Na seção Raça e entretenimento, a autora fala mais pontualmente de alguns filmes com personagens negros os quais ela assistiu e como ela se decepcionou. Histórias cruzadas (2011), Django livre (2012) e 12 anos de escravidão (2013) são filmes que, apesar das premissas terem se mostrado inovadoras para ela, foram uma decepção. Apesar de os filmes em questão serem protagonizados ou focados em negros, eles continuam reforçando aquela velha ideia de que os brancos é que salvam os negros no final, além de usarem do sofrimento dos negros (físico e emocional) para atingir o "coração do público", realçando cenas em que os negros sofrem, são humilhados, agredidos, para Gay, isso é sofrimento demais e ela já está cansada disso. Eu imagino.

Há também a discussão sobre "cultura do estupro" e sobre como o estupro vem sendo representado nos livros, jornais, televisão etc. erroneamente. Para ilustrar essa afirmação, a autora cita o caso de uma menina de onze anos estuprada por dezoito homens no Texas (um estupro coletivo, vejamos, isso aconteceu há pouco tempo no Brasil) e como um artigo do The New York Times tratou do assunto: preocupado com a cidade, cujos moradores nunca mais seriam os mesmos e, pasmem, os dezoito rapazes também nunca mais seriam os mesmos. É sério isso? Não sei porque eu fico surpresa. E a vítima onde fica?

"Houve discussão sobre o fato de a menina de onze anos, a criança, vestir-se como se tivesse vinte, deixando implícita a possibilidade de que uma mulher possa "pedir por isso" e também de que, de alguma forma, é compreensível que dezoito homens estuprem uma menina." (p. 132)

Eu, na minha ignorante concepção de mundo, achava que discussões como a da cultura do estupro existissem somente no Brasil. Ledo engano. Nós, mulheres, não estamos seguras em parte alguma. A autora sugere, inclusive, que troquemos o termo por "Cultura de estupradores", pois quem sabe, assim, as pessoas tenham uma ideia mais clara da dimensão do problema.

Enfim, posso dizer que os temas que a autora traz são de extrema importância e precisam ser discutidos o quanto antes. Pois é visível que ser mulher, apesar dos avanços que foram feitos em relação à igualdade de gênero, ainda é muito perigoso. Enquanto a mídia continuar objetificando-nos e tratando casos de estupro com trivialidade, induzindo-nos a pensar que a vítima é a culpada, nada disso vai mudar.

***

Fiquei muito presa a essa leitura, não posso negar, pois, assim como a Roxane Gay, também me considero uma má feminista, logo, tenho tentado cada vez mais me aprofundar para entender o movimento feminista. Posso dizer que essa leitura me abriu os olhos para muitas coisas e me fez aumentar minha empatia em relação às mulheres negras, já que pude ler o relato de uma, a própria autora. Isso me lembra a sororidade .

Antes de terminar, preciso fazer um pequeno comentário à edição. Encontrei alguns erros de revisão, oito, para ser mais exata, erros de descuido mesmo, nada em relação à grafia. Outra coisa que me incomodou foi a tradução. Às vezes, eu sentia que aquilo não tava bem traduzido, dava para saber certinho o que estava escrito no original, porque não soava como português, em alguns momentos dava para sentir que a sintaxe e a prosódia eram do inglês. Eu imagino que a estilística da autora, no original, fosse algo que beirasse o linguajar jovem, com gírias e muitas expressões da língua inglesa, por isso, eu imagino que para a tradutora deve ter sido muito difícil traduzir esse livro, já que, se ela optasse por uma adaptação cultural... Não, ela nem deveria cogitar a ideia de tradução por adaptação cultural. Enfim, foi por esses dois motivos que eu dei 4 estrelas ao livro no Skoob, que são referentes à edição e não à obra. Agora vou parar porque meu pequeno comentário já está tão grande quanto um dos volumes de As crônicas de gelo e fogo, haha.


Beijinhos, Hel.

GAY, Roxane. Má feminista: ensaios provocativos de uma ativista desastrosa. 1ª ed. São Paulo: Novo Século Editora. 2016. 312 p. Tradução de Tássia Carvalho.

You Might Also Like

14 comentários

  1. Oii!

    Não li a obra, mas só pelo o que você mostrou na resenha já imagino que seria uma leitura bem legal.
    É bom descobrir pessoas que defendem o mesmo que nós, mas que nos mostram perspectivas diferentes sobre o assunto.
    Boa resenha!!

    Beijos

    www.ooutroladodaraposa.com.br

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, Rai.
      É uma leitura bem legal sim. Tem toda uma pegada mais contemporânea, com referências da cultura pop, isso, acredito, atrai o público mais jovem para discussões importantes como a questão dos gêneros, do preconceito etc..

      Obrigada, bjs!

      Excluir
  2. Oi, Hel!
    Estava esperando por essa resenha. Como eu presumia, aumentou a minha curiosidade com relação a obra. Adorei saber que o livro envolve assuntos tão importantes, além, é claro, do feminismo. E é sério, espero poder lê-lo em breve.
    Beijos
    Historiar

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi, Thami.
      Outras pessoas também estavam curiosas por essa resenha, achei isso legal. O livro trata sim de outros temas e eu achei importante falar disso no início, muita gente, por pensar que o livro fale só sobre o feminismo pode achar que com a leitura de outras obras fundamentais pode descartar a leitura deste livro. ;)
      Quando ler me avisa para conversarmos sobre o livro ;)
      Beijos.

      Excluir
  3. Olá! =)
    Curioso o livro parecer tão bom quando a primeira visão não foi tão boa.
    Pelo menos faz bastante sentido agora, essa questão de "má" feminista.
    Que pena que tem esses detalhes com a edição... Isso desanima um bocado. =\
    Adorei tua resenha, fiquei com curiosidade de ler o livro. =)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá!
      Sim, a impressão do título foi totalmente desfeita depois da leitura, a autora explica no início e no final do livro sobre essa questão de se considerar uma má feminista e fica bem claro. :)
      A edição ficou a desejar sim, não esteticamente falando, mas na questão da revisão e tradução, uma pena.
      Muito obrigada pelo feedback!

      Excluir
  4. Hel, amei sua resenha!! É mais um livro que eu conheço pelo seu blog e já coloco na minha lista de leituras urgentes!
    Beijinhos!!
    Check-in Virtual

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, Lívia!
      Muito obrigada! Que bom que estou te apresentando livros diferentes e que tu tens te interessado pelas minhas dicas, boas leituras.
      Beijinhos!

      Excluir
  5. Nossa, parece muito interessante! Nunca li muito sobre feminismo, exceto pelos "textões" do Facebook e por um ou outro blog que sigo (Nó de oito, Lado M, Elas Por Elas). Mas quero dizer: nunca li os textos clássicos nem nada do tipo. E esse livro me pareceu muito importante, por ser uma visão contemporânea e muito atual (e mais completo do que o "Sejamos Todas Feministas", da Chimamanda, que eu gostei bastante). Vou ver se encontro o livro na estante virtual para poder ler também! <3

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi, Lethycia!
      Eu tenho lido um pouco mais nesse ano sobre o feminismo, algo de Woolf aqui, uma Chimamanda acolá... e tenho me interessado cada vez mais! Afirmo que esse texto da Roxane tem essa pegada contemporânea mesmo, sem deixar a desejar em relação aos textos clássicos do feminismo. Recomendo a leitura e se ler vem conversar comigo sobre ;)
      Beijinhos!

      Excluir
  6. Estou apaixonada por essa resenha e já quero ler o livro agora mesmo!
    Tô achando incrível encontrar, cada dia mais, resenhas sobre livros com temas feministas, é algo tão, mas tão necessário, e nós sabemos o quanto temas assim precisam estar em livros, né? Os livros têm a capacidade de mudar pensamentos retrógrados (eu sei disso porque fui um exemplo, uma ou duas vezes) e nos faz enxergar o mundo de forma diferente, como se algo a mais fosse adicionado na nossa forma de pensar. Adorei, adorei, adorei! <3

    Beijos,
    milenaschabat.blogspot.com

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, Milena! Cada vez mais os temas que vem sendo debatidos na sociedade têm se tornado pauta dos livros, né?! Isso é muito bom, torna mais didatizadas as discussões e leva para o alcance de mais pessoas.
      Também acho que os livros têm essa capacidade de mudar pensamentos, a leitura é uma coisa mágica! O que seria de nós sem o domínio da palavra, não é mesmo?

      Muito obrigada e boa leitura! Bj!

      Excluir
  7. Não conhecia esse livro, mas vou já adicionar na minha estante do Skoob!
    Também me considero uma má feminista. Aliás, há poucos anos eu nem mesmo me considerava feminista e achava isso tudo a maior chatice! Fazia parte do grupo "machismo não existe", sabe? Cruzes, que horror só de lembrar hahaha
    Não conhecia o termo negro mágico também, mas realmente lembrei de filmes em que isso ocorre. Achei que fosse adorar Django Livre, mas não foi isso que aconteceu e acabei nem terminando de assistir.
    Enfim, é uma pena que o livro tenha esses erros todos :/

    Beijos,
    Kemmy|Duas leitoras

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, Kemmy. Conheço essa tua história, eu também achava que o feminismo era desnecessário, mas a gente cresce, vira adulta, e de repente percebe que "o buraco é mais embaixo".
      Eu ainda não assisti Django livre, mas agora nem sei se quero!
      Bjs!

      Excluir

Deixe um comentário! Eu vou adorar saber a sua opinião e com muito prazer te responderei :)