Fahrenheit 451 - Ray Bradbury

17:00

Fahrenheit 451 é uma leitura de deixar qualquer leitor de cabelo em pé, já que, no universo da estória, ler ou mesmo ter livros em casa, é considerado um crime sujeito à prisão. Os que são pegos com livros em casa são denunciados e os bombeiros incineram tudo. Isso mesmo, ao invés de apagar fogo, os bombeiros ateiam fogo, já que as casas são à prova de incêndio nessa época. Sem livros, as pessoas vivem tão ocupadas em distrações como programas de televisão e tão dopadas de remédios, que elas sequer conseguem manter uma conversa interessante.

Como eu li no kindle, fiquei pensando, inevitavelmente, que Bradbury não previu os e-books, haha.

O protagonista é Montag, um bombeiro que, após uma conversa com sua vizinha, Clarisse, começa a questionar o status quo. E aí começa a ver a situação por um novo ângulo. Porém, com o desaparecimento misterioso de Clarisse, ele começa a se rebelar e esconder livros dentro de sua casa, colocando em alto risco sua situação e correndo o risco de ser denunciado por seus conhecidos aos seus colegas de trabalho.

"Não estava feliz. Não estava feliz. Disse as palavras a si mesmo. Admitiu que este era o verdadeiro estado das coisas. Usava sua felicidade como uma máscara e a garota fugira com ela pelo gramado e não havia como ir bater à sua porta para pedi-la de volta."

***

O enredo de Fahrenheit 451 encaixa-se no gênero literário distopia, um dos meus favoritos. Sabemos que as distopias simulam uma realidade futurística, normalmente uma realidade em que os sistemas políticos são opressores e as condições de vida são intoleráveis, o contrário, logo, de utopia. Porém, se tem algo que as distopias me fazem refletir é que elas não estão tão distantes assim da nossa realidade. É claro que não queimamos nossos livros, hoje em dia, mas o que eu quero dizer é que há uma queima simbólica de livros, sim. Afinal, como queimamos nossos livros atualmente?

Antes de entrar no mérito da questão acima, preciso dizer que essa edição da Biblioteca Azul está excelente, com textos de apoio, um de autoria do próprio Bradbury, em que ele vai versar sobre alguns assuntos que me deixaram muito reflexiva. Claro que o romance, em si, já me fez pensar muito, mas foi com a leitura do texto do autor que eu cheguei em um assunto que muito me preocupa, a adaptação/simplificação de livros.

"[...] para isso que vivemos, não acha? para o prazer, a excitação? E você tem de admitir que a nossa cultura fornece as duas coisas em profusão."

Li, no ano passado, um artigo que criticava e analisava um projeto que estava causando muita polêmica no Brasil, encabeçado por Patricia Engel Secco, que tinha o intuito de simplificar, facilitar, as obras do Machado de Assis por meio da reescrita e troca de termos "difíceis" por uma linguagem mais "acessível" aos jovens leitores. Reparem que difíceis e acessível estão entre aspas porque a questão é tão esdrúxula que não poderia deixar de questionar a validade de tal proposta e questionar o que seria, então, considerado difícil e acessível.

"Os bons escritores quase sempre tocam a vida. Os medíocres apenas passam rapidamente a mão sobre ela. Os ruins a estupram e a deixam para as moscas. Entende agora por que os livros são odiados e temidos? Eles mostram os poros no rosto da vida. Os que vivem no conforto querem apenas rostos com cara de lua de cera, sem poros nem pelos, inexpressivos."


A principal crítica é a de que, enquanto literatura, textos como os de Machado de Assis encerram em si questões que vão além dos aspectos linguísticos, como o contexto histórico e todo o aspecto estético e estilístico do autor em questão. Com a simplificação do vocabulário, não só o texto irá perder sua historicidade, como também a sua identidade e passará, então, a ser um novo texto, não mais aquele original. Entendem como tudo isso é prejudicial?
Será que vale a pena fazer com que o texto literário chegue até o leitor dessa forma? Não seria essa proposta uma forma de mascarar o problema da leitura no Brasil, numa tentativa de “tapar o sol com uma peneira”? Não seria mais fácil, então, investir em práticas mais eficazes de leitura ou na escolha de textos mais contemporâneos, já que os textos canônicos são “difíceis”? Obviamente, a proposta de simplificar os textos ditos “enfadonhos e difíceis” para os leitores compreenderem não é a maneira mais acertada de consertar o problema da leitura. 

Deixando os devaneios um pouco de lado e voltando ao livro em questão, vocês percebem que não é preciso queimar um livro para que a literatura seja prejudicada?  

E mais uma impressão que a leitura de Fahrenheit 451 me causou foi a de que a leitura, nem sempre, nos faz sermos mais críticos. Alguns dos personagens, por exemplo o chefe do Montag, liam, mas isso não os tornavam melhores, muito menos os levavam a se questionar sobre o estado das coisas. E, também, havia o fato de que somente os livros ditos "literários" eram banidos, sendo que outros tipos de livros que não concentravam nenhuma literariedade em si eram permitidos. O que me leva à questão da grande parte dos livros que são comercializados atualmente: seriam eles literários? Ou seriam apenas subterfúgios, distrações, assim como as telas em que a mulher de Montag passa seu tempo assistindo?

Lanço essas questões e as deixo em aberto, pois eu me prolongaria demais se escrevesse tudo que me vem à mente sobre esse assunto, mas, claro que podemos conversar nos comentários, sempre.

Também deixo a indicação de leitura desse livro, que é maravilhoso e que deveria ser lido por todos, em especial, essa edição.

Beijinhos, Hel.

BRADBURRY, Ray. Fahrenheit 451. Tradução de Cid Knipel. São Paulo: Globo, 2012. 

You Might Also Like

10 comentários

  1. Olá Hel! Li Fahrenheit 451 ano passado e foi uma das resenhas que fiz com bastante spoilers. Acho que foi a única distopia que li até hoje. Esse livro é real demais, alguns autores tinham uma mente aberta suficientemente para perceberem que o ser humano estava caminhando para a bestialidade. Eu sei que é uma afirmação forte, mas a leitura é atualmente um hábito de determinado grupo social e as frivolidades que nada acrescentam tornaram-se essenciais. O triste é saber que as histórias distópicas acertaram o comportamento social futuro e a sociedade nem precisa ser vigiada para ser obrigada a não ser questionadora, pensante. Nós estamos escolhendo sermos manipulados todos os dias, sem ter um vigia para que isso ocorra. Sobre Machado de Assis, sou contra a "tradução" de sua obra, acho que perderia a essência, ironia e criticidade, marcas tão importantes de sua escrita. Existem YA que já são fáceis de ler. O jovem que tiver interesse em ler Machado, precisa se esforçar para tal. Sem falar nos leitores de e-books que facilitam muito a vida do leitor, com apenas um toque você pesquisa o significado de uma palavra. Beijo!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Maria, eu acho que a palavra bestialidade é forte, mas totalmente aplicável ao que nos aguarda. E como vc disse, é triste ver que ainda no século passado os escritores já previam o caminho pelo qual nos encaminharíamos. A verdade é que atualmente os livros nem precisam ser proibidos, as pessoas os rechaçam de imediato, há muitas outras fontes de diversão mais "interessantes". Só se lê quando é extremamente obrigatório (escola e vestibular, por exemplo) e isso justifica a simplificação do conteúdo, já que os jovens não estão acostumados a ler (também pudera).
      Obrigada pela participação, Maria.
      Beijo!

      Excluir
  2. eu vi o filme q é fantástico. não li o livro. beijos, pedrita

    ResponderExcluir
  3. Olá, Helena! Tudo bem? Eu acredito que a leitura dessa obra deveria ser lida por todos que puderem ler. Vale muito a pena. Sobre traduzir livros de Machado de Assis, sou contra. Para quem acha a linguagem difícil, existem muitos livros com a linguagem contemporânea que as pessoas podem ler. Abraços!

    www.marcasliterarias.com.br

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi, Luciano. Tudo ótimo, e contigo?
      Também acho que esse liro é um dos essenciais em qualquer acervo, deve ser lido e não somente uma vez.

      A questão é que as vezes, os jovens precisam ler Machado de Assis entre outros para provas na escola ou concursos como o vestibular, por isso eles recorrem aos resumos e simplificações. Acredito que os que leem contemporâneos por serem leitores, não verão tanta dificuldade. Mas o que não leem nada? Aí reside o problema...
      Abraço!

      Excluir
  4. Oi Hel :)

    Ah distopias e suas infindáveis formas de nos atingir em cheio! Não sabia do que se tratava esse livro, e que surpresa agradável! Parece ser mais uma distopia obrigatória nos livros lidos de um leitor. Sobre Machado de Assis espero que essa estupidez tenha sido desconsiderada. Resenha incrível, beijos...

    www.blogleituravirtual.com/

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi, Gustavo!
      Eu amo distopias por causa disso: me fazem pensar em muita coisa durante dias, abrem minha mente!

      Eu não sei que destino tomou este projeto, mas espero que tenha sido a lata do lixo!
      Beijos!

      Excluir
  5. Uau, que resenha incrível! Gosto muito quando um livro desperta tanta reflexão. No caso das distopias, parece que não só ficamos imaginando como seria o tal futuro horrível, mas também fazemos conexões com coisas semelhantes que acontecem na nossa realidade (e que às vezes nem aconteciam na época que o livro foi escrito, o que é mais incrível).
    Concordo com você em relação a esse projeto de lei, que eu nem conhecia. A intenção da autora deve ser boa, tentar fazer "esses jovens de hoje" lerem. Adaptações podem ser boas para quem está começando, mas em outros casos podem ser prejudiciais. Muita gente, quando pega um livro adaptado, nem sabe que está lendo uma versão simplificada. Foi assim quando eu li uma versão romanceada de "O mercador de Veneza", antes de descobrir que Shakespeare era dramaturgo! kkkkkk
    Sua resenha e toda essa reflexão sobre simplificar leituras me fez lembrar do vídeo da Tatiana Feltrin sobre as distopias de hoje em dia. Ela criticava o fato de muitos adolescentes lerem três ou quatro livros de 500 páginas cada um, produzidos de maneira altamente vendável, quando poderiam buscar as histórias antigas que estão em livros bem menores porém mais complexos.
    Sempre bom ver uma reflexão tão profunda (coisa que falta em blogs literários). Adoro quando uma resenha inclui questionamentos sobre nossas vidas.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Pois é, Leth, mas de boa intenção o inferno está cheio. Como diz a sabedoria popular, haha.
      E como vc aponta, pode ser muito prejudicial porque aqueles que não tiveram contato com um texto integral do autor podem achar que estão lendo o original, quando na verdade não o estão. Isso já aconteceu comigo, pois não era acostumada a ler ficha catalográfica nem nada quando criança (qual a criança que lê uma ficha catalográfica mesmo?!) e achei que estava lendo A odisseia, quando lia a versão em prosa pra crianças. Nem minha professora me alertou!

      Eu assisti a esse vídeo da Tati, concordei com ela. Acho que as distopias de hoje em dia estão muito mais pobres de reflexão e chocam os leitores mais pela recepção do que pela reflexão.

      Que bom que vc gostou do texto, fico lisonjeada.
      Bjs!

      Excluir

Deixe um comentário! Eu vou adorar saber a sua opinião e com muito prazer te responderei :)