A desumanização - Valter Hugo Mãe

17:00

"As palavras são objetos magros incapazes de conter o mundo. Usamo-las por pura ilusão. Deixámo-nos iludir assim para não perecermos de imediato conscientes da impossibilidade de comunicar e, por isso, a impossibilidade da beleza." (MÃE, p. 27)
Isso é o que eu chamo de um pequeno grande livro. Certamente um dos melhores que li esse ano.

Halla e Sigridur são gêmeas, mas Sigridur morreu e a gêmea "menos morta" agora precisa continuar sua vida. É assim que se desenrola a estória de A desumanização, título, a propósito, muito simbólico.
No ano passado eu já havia lido um livro sobre irmãs gêmeas, em que uma falecia e a outra encarava uma grave crise existencial, mas nem de longe As gêmeas do gelo abordam com tanta profundidade e sensibilidade esse laço que existe entre gêmeos e de uma maneira tão tocante quanto Valter Hugo Mãe fez.

"Éramos gémeas. Crianças espelho. Tudo em meu redor se dividiu por metade com a morte." (MÃE, p. 9)

A protagonista, Halla, passa pelas várias fases do luto, a negação da morte e a sensação de que ela, assim como a irmã, também está perdendo sua humanidade. Pelo fato de se sentir tão ligada à irmã "plantada", em certos momentos ela sente que sua alma e corpo estão se dividindo. Existe, também, toda a pressão por ser a gêmea que continua viva e a relação com a mãe começa a ficar conturbada. A gêmea que morreu vai ser para sempre uma criança, já Halla, ao passo que cresce e descobre a sexualidade, entre outros aspectos de ser uma adolescente, deixa de se sentir próxima da irmã, mas não ao ponto de esquecê-la.

"[...] a morte é um exagero. Leva demasiado. Deixa muito pouco." (MÃE, p. 13)

O cenário da estória, quase como um personagem, também é muito importante para a compreensão do enredo. A Islândia é quase que antropomorfizada e constantemente são feitas analogias e metáforas que dão a entender semelhanças entre os personagens e o ambiente. Além disso, a ambientação dá à narrativa um tom de silêncio, tácito, quase lúgubre. Isso faz com que a experiência da leitura se torne um pouco triste e bastante melancólica.

"As montanhas eram corpos deitados. Não tombaram. Eram assim. Deitavam-se por maturidade. Sem palavra. Como um poema calado. (MÃE, p. 46)
A Islândia é famosa pelas suas lindas paisagens, os gêiseres e a aurora boreal. Além disso, também é famosa por ser um dos países mais pacíficos do mundo, sendo um exemplo para outras nações.
Créditos na foto.
Outro aspecto a ser comentado é a escrita de Valter Hugo Mãe. Ela é composta por sentenças breves, pontuação irregular. As falas não são sinalizadas, e o ritmo é lento, quase como se fosse necessário digerir cada palavra devagar, absorver tudo é praticamente impossível. Apesar de ser em prosa, a sensação de poesia que a narrativa tem é impressionante. Em certo momento o narrador fala sobre a arbitrariedade do signo, sobre as palavras não serem o que elas nomeiam, e sobre como é quase impossível nomear o belo, transmitir a beleza por meio da linguagem. Em relação a tudo isso, arrisco dizer que Valter Hugo Mãe se aproxima muito de conseguir cumprir essa tarefa, pois sua escrita é de uma beleza sem igual. Ao versar sobre a metalinguagem, ele consegue colocar beleza em uma narrativa triste e angustiante.

"Talvez fosse isso o que significava a morte entre gémeas. Deixávamos de ser gémeas e quebrava-se a telepática relação que existira até então. A morte impedia a irmandade e as semelhanças. [...] Voltaríamos a ser gémeas mais tarde." (MÃE, p. 55)

São tantas passagens marcantes nesse livro, que acredito que essa resenha tenha ficado um tanto poluída, pois queria ilustrar o talento que Valter Hugo Mãe tem com as palavras. Dizer que esse livro é maravilhoso, a essa altura, seria o mesmo que afirmar o que o narrador afirma: é impossível comunicar a beleza. Por vezes, me sinto assim ao querer trazer alguma indicação de leitura aqui no blog, e só me basta confiar e esperar que meus leitores captem o pouco de beleza que quis transmitir com minhas palavras.

“Quando falo, não entrego nada. Deixo mesmamente despido quem tem frio e não encho a barriga dos que têm fome. Quando falo, o que faço é perto do não fazer nada e, no entanto, cria-nos a sensação de fazer tanto. Como se falando pudéssemos fazer tudo. O que digo é só bom porque pode ser dito, mas não se põe de parede para a casa ou de barco para a fuga. Não podemos ir embora. Falar é ficar. Se falo é porque ainda não fui. Ainda aqui estou. Preciso de me calar, pai. Preciso de aprender a calar-me. Quero muito fugir." (MÃE, p. 34)

Beijinhos, Hel.

MÃE, Valter Hugo. A desumanização. São Paulo: Cosac Naify. 2014, 160 p.

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10 comentários

  1. eu li um só livro dele, a máquina de fazer espanhóis. gostei. beijos, pedrita

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    1. Oi, Pedrita. Eu só li esse e quero ler mais do autor, gostei demais da escrita dele.
      Beijos!

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  2. Oi, Helena! Parabéns sua resenha está estupenda. Pelo que li, essa obra é maravilhosa, daquelas que tocam nossa alma. Eu li um livro desse autor, mas não me recordo o nome, lembro-me, que gostei bastante da leitura. Dica mais que anotada, preciso lê-lo. Abraços!!

    www.marcasliterarias.com.br

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    1. Oi, Luciano. Muito obrigada!
      É um livro bem profundo, indico se vc gosta de leituras mais intensas.
      Abraços! ^^

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  3. Oi Hel! Que resenha inspirada! Tenho um bloqueio com Valter Hugo Mãe, nunca li uma resenha negativa sobre os livros dele, são sempre resenhas elogiosas e encantadas com a escrita do autor. Entretanto tenho uma sensação de tristeza quando leio as sinopses, é apenas loucura de leitor, um dia quem sabe. E as citações que você colocou no texto são lindas, poéticas mesmo. Abraço! ;)

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    1. Oi, Maria. Me inspirei mesmo, eu sempre acabo influenciando a minha escrita pelo último lido, haha.
      É, lamento dizer que é um livro triste, sim. Bem melancólica. Se vc não se sente bem lendo esse tipo de narrativa, talvez vc deva ficar longe desse livro.
      Abraço. :)

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  4. Oi! =)

    Esse autor realmente parece muito bom. E sua resenha ficou ótima! Além de que gostei das citações.
    Tenho dois livros do autor, esse que resenhasse e o "A máquina de fazer espanhóis", mas ainda estou esperando o momento certo pra ler, sabe? Até comecei um deles mês passado (acho), mas não foi um bom começo e estou deixando para depois.
    Enfim, esses livros que abordam questões profundas, o poder das palavras (às vezes me parece curioso que os autores que falam sobre isso geralmente têm conhecimento de linguística e tal) e a relação entre gêmeas sempre me atraem. E agora estou bem curiosa para ler esse livro!
    Aliás, essa foto (muito bonita, por sinal) passa uma sensação diferente da que tinha do livro até agora, e acho que às vezes esqueço de ambientar melhor o que leio. Vou prestar mais atenção nisso, acho.

    Se leres outro livro do autor, gostaria de saber tua opinião depois. ^^
    Abraços.

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    1. Oi, Paula. Acho que vc vai gostar desse livro, embora vc não aprecie essa pegada mais poética.
      Sobre as partes sobre linguagem, eu consegui pegar várias referências da linguística e achei isso demais!
      Com certeza quero ler mais desse autor, mas não sei se será tão breve.
      Abraço! ^^

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  5. Ver uma resenha tão elogiosa sobre esse livro só me faz lamentar mais ainda por não poder terminar. 😭
    Enquanto lia, mesmo estando ainda bem no início, eu consegui sentir tudo isso que você diz, e realmente é muito bonita a escrita do Valter Hugo Mãe. É um tipo de livro que a gente precisa mesmo ler devagar, pra poder sentir melhor.
    Espero algum dia poder retomar a leitura. :(

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    1. Aí, miga. Eu fiquei tão triste por você ter perdido, ainda mais porque esse livro é incrível. Também espero que vc reencontre essa leitura.
      Beijos ^^

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